5 Poemas de Ferreira Gullar

Alguns anos atrás eu iniciei o que deveria ser uma série pra espalhar poemas neste reles site, mas só fiz um post sobre o Vinicius de Moraes. Tentarei retornar com a ideia através do Ferreira Gullar, pois é um dos meus favoritos.

• Ferreira Gullar, pseudônimo de José Ribamar Ferreira, foi um escritor, poeta, crítico de arte, biógrafo, tradutor, memorialista e ensaísta brasileiro e um dos fundadores do neoconcretismo. Ferreira Gullar nasceu em São Luiz do Maranhão, em 1930, publicou seu primeiro livro, “Um Pouco Acima do Chão”, em 1949. Com o golpe militar, em 1964, foi preso e exilado — passou por Moscou, Santiago, Lima e Buenos Aires, só retornando ao Brasil em 1977. Durante o exilio na Argentina, escreveu sua magnum opus, o “Poema Sujo”, um longo poema, com quase 100 páginas, que foi traduzido em 25 países.

Não há Vagas

O preço do feijão
não cabe no poema.
O preço do arroz
não cabe no poema.

Não cabem
no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão

O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila
seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras

— porque o poema,
senhores,
está fechado:
“não há vagas”

Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço

O poema, senhores,
não fede
nem cheira.

Poema Sujo (trecho)

Mas sobretudo meu
                      corpo
                      nordestino
         mais que isso
                      maranhense
         mais que isso
                      sanluisense
         mais que isso
                      ferreirense
                      newtoniense
                      alzirense
meu corpo nascido numa porta-e-janela da Rua dos Prazeres
                      ao lado de uma padaria
                      sob o signo de Virgo
                      sob as balas do 24o BC
                      Na revolução de 30
e que desde então segue pulsando como um relógio
                      num tic tac que não se ouve
(senão quando se cola o ouvido à altura do meu coração)
                      tic tac tic tac
enquanto vou entre automóveis e ônibus
                      entre vitrinas de roupas
                      nas livrarias
                      nos bares
                      tic tac tic tac
pulsando há 45 anos
                      esse coração oculto
pulsando no meio da noite, da neve, da chuva
debaixo da capa, do paletó, da camisa
debaixo da pele, da carne,
combatente clandestino aliado da classe operária
                      meu coração de menino.

Traduzir-se

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?

Agosto 1964

Entre lojas de flores
e de sapatos, bares,
mercados, butiques,
viajo num ônibus
Estrada de Ferro-Leblon.
Volto do trabalho,
a noite em meio,
fatigado de mentiras.

O ônibus sacoleja.
Adeus, Rimbaud,
relógio de lilases,
concretismo,
neoconcretismo,
ficções da juventude,
adeus, que a vida
eu compro à vista
aos donos do mundo.
Ao peso dos impostos,
o verso sufoca,
a poesia agora
responde a inquérito
policial-militar.

Digo adeus à ilusão
mas não ao mundo.
Mas não à vida,
meu reduto e meu reino.
Do salário injusto,
da punição injusta,
da humilhação,
da tortura, do horror,
retiramos algo e com ele
construímos um artefato
um poema
uma bandeira.

O lampejo

O poema não voa de asa-delta
não mora na Barra
não freqüenta o Maksoud.
Pra falar a verdade, o poema não voa:
anda a pé
e acaba de ser expulso da fazenda Itupu
pela polícia.

Come mal dorme mal cheira a suor,
parece demais com o povo:
é assaltante?
é posseiro?
é vagabundo?
frequentemente o detêm para averiguações
às vezes o espancam
às vezes o matam
às vezes o resgatam
da merda
por um dia
e o fazem sorrir diante das câmeras da TV
de banho tomado.

O poema se vende
se corrompe
confia no governo
desconfia
de repente se zanga
e quebra trezentos ônibus nas ruas de Salvador.

O poema é confuso
mas tem o rosto da história brasileira:
tisnado de sol
cavado de aflições
e no fundo do olhar, no mais fundo,
detrás de todo o amargor,
guarda um lampejo
um diamante
duro como um homem
e é isso que obriga o exército a se manter de prontidão.

8 respostas para “5 Poemas de Ferreira Gullar”.

  1. Avatar de poetateixeira

    Seja bem vinda no retorno, com essa bela e oportuna janela aberta, Ferreira Goullar.

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    1. Avatar de Mabi Ferreira
      Mabi Ferreira

      Agradeço o apreço, poeta! 😉

      Curtido por 1 pessoa

  2. Avatar de O Miau do Leão

    Reles? Longe disso.
    Aprendi algumas coisas com seu post. Eu nunca li o Goullar. E nem sabia que era nordestino. Sem dúvida é concretismo do início ao fim.

    Curtido por 1 pessoa

    1. Avatar de Mabi Ferreira
      Mabi Ferreira

      Sério? Então fico feliz de “te introduzir” rsrsrs ❤
      Obrigada pelo comentário!

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  3. Avatar de Pedro
    Pedro

    Nossa quando eu li poema sujo, me tornei fã da obra do Gullar, sem duvidas um grande poeta nacional. Essa sua necessidade pungente de retratar o povo, seu concretismo absoluto, não se se você já o viu declamar “poema sujo” vou te deixar o link : https://youtu.be/gQPW15sIf24
    Um gênio.

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    1. Avatar de Mabi Ferreira
      Mabi Ferreira

      Olá, Pedro!
      Eu adoro assistir aos poetas fazendo a declamação de suas obras, obrigada pela gentileza!
      E concordo, era um gênio!

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  4. Avatar de estevamweb

    Ler estes poemas é uma viagem concreta em nossa história, em boa parte do século XX.

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    1. Avatar de Mabi Ferreira
      Mabi Ferreira

      Sim, Estevam! Especialmente pela perspectiva dos ‘esquecidos’…

      Curtido por 1 pessoa

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I’m Renata Fernandes

Sou a Renata Fernandes, uma alma inquieta de 27 anos, cuja jornada começou nas terras tropicais do Brasil no agreste pernambucano e me levou a aportar em Lisboa, Portugal, moro na Europa há dois anos. Sou uma eterna apaixonada por viagens, e línguas, sempre estou buscando novas experiências e culturas para enriquecer minha visão de mundo.
Com uma formação em licenciatura em letras, encontrei no universo dos livros minha grande paixão. Aqui no meu cantinho, pretendo compartilhar não só minhas aventuras pelo mundo, mas também as histórias que me encantam e emocionam nas páginas dos livros que leio.

Seja bem-vindo(a) ao meu mundo literário, onde cada página é uma viagem para a imaginação!”

I’m Mabi Ferreira

Sou a Mabi Ferreira, uma mulher de 28 anos que chama lar o caloroso sertão pernambucano. Minha paixão pelas palavras, segui o caminho da licenciatura em letras e hoje sou uma professora de língua portuguesa, e pós-graduada em psicopedagogia institucional e clínica. Como uma típica escorpiana, prefiro observar atentamente antes de agir, absorvendo cada detalhe do ambiente ao meu redor. Sou uma amante fervorosa da cultura, encontrando beleza e significado em cada manifestação artística e tradicional. E, claro, não há prazer maior para mim do que saborear um delicioso sorvete em uma tarde ensolarada.

Seja bem-vindo ao meu mundo, onde a educação, a cultura e os pequenos prazeres da vida se entrelaçam em uma jornada de aprendizado constante.